Idade: 7, 8, 9, 10. Sexo: masculino. Condição social: pobre. Condições familiares: de preferência, um filho sem pai, sozinho – ou com uma irmã. Onde procurar: nas ruas, escolas, famílias. Como fisgar: aulas de violão, coral, coroinha. Importantíssimo: prender a família do garoto. Possibilidades: garoto carinhoso, carente de pai. Sem moralismo. Atitudes minhas: ver do que o garoto gosta e atendê-lo em cobrança à sua entrega a mim. Como me apresentar: sempre seguro, sério, dominador, pai.
Você acaba de ler o diário de um padre condenado a
15 anos de prisão por abusos sexuais: Tarcísio
Tadeu Sprícigo. Em 2000, na cidadezinha de Agudos, São Paulo, ele ensinava
música para um garoto de 9 anos. Essa era a fisgada. O pagamento? Favores
sexuais, prestados durante um ano. Feitas as primeiras denúncias, em 2001, a
Igreja o transferiu para Anápolis, Goiânia. Lá, a história se
repetiria com mais duas crianças – uma de 13 anos, outra de 5.
Bizarro. Mas nada incomum. Escândalos assim têm
acontecido nos últimos anos, no mundo todo. Só nos EUA, único lugar com
estatísticas concretas sobre padres que cometeram abusos sexuais, 4 392 sacerdotes
católicos foram denunciados por esse tipo de crime entre
1950 e 2002. Isso dá 4% do total de pessoas que exerceram o sacerdócio no país
nesse período. Um número alto, ainda mais tendo-se em mente que menos de 1% da
população pode ser classificada como pedófila.
Os casos com crianças são os mais visíveis entre os
que envolvem a sexualidade dos padres. Mas não faltam
exemplos em outras searas. Há estimativas, veja só, de que metade dos
sacerdotes brasileiros tenham amantes. Boa parte deles, homens. E denúncias de
que o Vaticano abriga uma grande comunidade
gay, com chefões da Igreja fazendo sexo sadomasoquista.
Também existem milhares de sacerdotes que largam a batina a cada ano para casar
e ter filhos. E os que matam os filhos para não ter de largar a batina. Isso é
um pouco do que você vai ver nestas páginas.
O sexo dos
anjos
A bomba
sobre a sexualidade dos padres estourou lá
fora em 2004, com a publicação do Relatório John Jay – um estudo encomendado
pela própria Confederação de Bispos Católicos dos EUA à Faculdade de Justiça
Criminal John Jay, de Nova York. Foi de lá que saiu o dado sobre a existência de
milhares de padres acusados de pedofilia no
país. Tudo apurado a partir de acusações feitas às dioceses, não à polícia. A
iniciativa de pedir o relatório foi o ponto culminante de um escândalo que
tinha começado dois anos antes, quando o então arcebispo de Boston, cardeal
Bernard Law, confessou ter protegido um padre que, sabia ele, tinha molestado
crianças. Daí para a frente acusações e processos se avolumaram, trazendo à
tona casos que tinham acontecido desde a década de 1940.
E agora o assunto volta aos holofotes por aqui.
Imagine um dos mais respeitados defensores dos Direitos Humanos no Brasil. Um
protetor de moradores de rua, de internos da Febem e de crianças soropositivas,
admirado pelos movimentos sociais. Padre Júlio Lancelotti. Na metade de outubro,
ele denunciou o ex-interno Anderson Marcos Batista, de 25 anos, e sua mulher,
Conceição, de 44, ambos com antecedentes criminais por acusações de furto e
tráfico. Em 3 anos, o casal extorquiu do padre R$ 150 mil – ou R$ 600 mil,
segundo o próprio Batista. Uma das compras do ex-interno foi uma picape Pajero,
em que colou um adesivo – “Deus é fiel”. Para conseguir o dinheiro, o casal fez
uma série de ameaças. Uma delas, denunciar à imprensa que Lancelotti teria
abusado sexualmente do filho de Conceição, de 8 anos.
De vítima, o padre virou acusado.
Foi na
Febem que o padre conheceu Batista, então internado por roubo. Lá, diz ter sido
abusado pelo padre aos 16 anos. Batista afirma que, depois de liberado, manteve
um relacionamento sexual de 8 anos com o padre, em troca de dinheiro.
Não há provas dessas acusações, tampouco o padre
apresentou explicações convincentes sobre a origem do dinheiro. E, ao ser
indagado sobre o que o levou a pagar Batista por 8 anos, disse que “era para
mudá-lo pelo bem, não pela força”.
No fim das contas, a história parece
toda mal contada, em ambos os lados. E pode muito bem refazer o trajeto do
famoso caso da Escola Base, em São Paulo quando os donos do colégio foram
falsamente acusados de violentar seus alunos. Apesar da falta de provas, a
imprensa divulgou o caso com estardalhaço. A escola fechou. Aí, depois que o
mundo dos acusados já tinha caído, a polícia concluiu que todos eram inocentes.
É possível que isso se repita com o padre Júlio. Que ele nunca tenha molestado
uma criança. Mas, seja qual for o desfecho dessa história,
ela é só mais uma entre tantas acusações de cunho sexual contra sacerdotes da Igreja Católica.
E o problema não é só com eles: tribunais de
Justiça dos EUA e da Irlanda já decidiram que a Igreja, como instituição, é tão
responsável quanto os padres pelos crimes que eles cometeram. No ano passado,
14,7 mil crianças irlandesas receberam um total de 1,3 bilhão de euros em
indenizações por terem sofrido violências sexuais nas mãos de padres. Nos EUA,
a arquidiocese de Boston foi condenada em 2002 a pagar US$ 85 milhões a 552
vítimas. Em 2007, a de Los Angeles desembolsou mais ainda: US$ 600 milhões,
para 500 pessoas molestadas por sacerdotes. Além disso, escândalos se avolumam
até nas altas cúpulas: o cardeal austríaco Hans Hermann Groër, chefe da Igreja
de seu país, e o arcebispo George Pell, da Austrália, chegaram a se afastar dos
cargos nos últimos anos após acusações de pedofilia.
É evidente, também, que a Igreja Católica não detém o monopólio
dos escândalos sexuais. No Sri Lanka, por exemplo, um monge budista se matou
após ser condenado a 20 anos por pedofilia.
Nos EUA, um rabino de Nova York foi preso em 2006, acusado de molestar
crianças.
Mesmo
assim, não dá para negar a associação entre padres e abusos sexuais. E a
pergunta é óbvia: por que, num ambiente que prega a castidade e a retidão
moral, isso acontece tanto?
A motivação
Há várias hipóteses possíveis, nenhuma excludente.
Número 1: falta de punição. Os líderes locais da Igreja abafam os casos,
deixando os abusadores livres da Justiça comum. Nisso eles ficam soltos para
continuar praticando crimes. Dos 4 392 padres acusados no Relatório Jonh Jay,
por exemplo, só 14,1% foram denunciados à polícia. O resto das acusações morreu
dentro das dioceses, acobertado por líderes como o cardeal Bernard Law. O caso
do padre Tarcísio também ilustra isso. Em vez de denunciá-lo à Justiça, seus
superiores apenas transferiram-no de paróquia. E ele pôde continuar agindo.
Número 2: o padre é uma figura respeitada no seu
círculo social. Um criminoso de batina, então, tem grandes chances de se
aproveitar desse poder. É o que fez Hélio Alves de Oliveira. O padre Helinho
dirigia um colégio católico em Rio Claro, São Paulo. Em 2004, ele foi condenado
a 16 anos de prisão por atentado violento ao pudor.
Helinho abusava de 3 meninos que tinham entre 8 e 10 anos. As crianças tendiam
a obedecê-lo e ficar em silêncio.
A 3º hipótese é o celibato,
uma das mais polêmicas instituições da Igreja. E uma das mais antigas. A origem
dela se confunde com a das próprias religiões. Sua função, historicamente, é
fazer com que o religioso se desapegue do mundo material. Ela está no
hinduísmo, que tem 5 mil anos de história,
por exemplo. O budismo, que começou por volta do ano 500 a.C., teve seus
primeiros dias como uma ordem de monges que via no celibato uma
forma de eliminar o desejo – e, de quebra, o sofrimento com as frustrações.
Na Europa, o celibato existe
pelo menos desde a Antiguidade Clássica, seja entre filósofos, como Pitágoras –
ele acreditava na falta de sexo como
uma forma de alcançar o equilíbrio –, seja entre sacerdotes de cultos arcaicos,
como o maniqueísmo e o hermeticismo. E no fim das contas chegou aos cristãos.
Em boa parte, por influência de um homem que louvava o celibato,
o apóstolo Paulo de Tarso, maior divulgador do cristianismo durante o século 1.
No ano 306, o concílio regional de Elvira reformulou as leis da cristandade e
decretou que, mesmo casados, padres e bispos deveriam abster-se do sexo.
Dezenove anos depois, outro concílio, o de Nicéia, proibiu que padres vivessem
com mulheres que não fossem sua mãe, irmã ou tia. Mas o casamento só foi
abolido de vez depois que o papa Gregório 7º reforçou a imposição ao celibato,
a partir de 1074.
A instituição nunca deixou de ser questionada,
claro. Principalmente na Reforma Protestante, dos séculos 16 e 17. Para os
reformadores, além de ir contra os ensinamentos bíblicos, o celibato era
uma das causas para “abominações e más condutas sexuais” dentro do clero.
Vida sem sexo
Aqui é preciso abrir um parêntese na história da
Igreja para ouvir o que a ciência tem
a dizer. Você sabe: a idéia do celibato parece
totalmente contra a natureza. Para o grosso da população mundial, passar o
resto da vida sem sexo não fica atrás de ser condenado à prisão perpétua.
Mas e aí? Dá mesmo para viver sem sexo?
“Dá, sim”, diz o psicoterapeuta sexual Oswaldo Rodrigues Jr., diretor do
Instituto Paulista de Sexualidade.
“Se uma pessoa tem um projeto de vida racional que implique celibato,
ele é viável. Não atrapalha.”
A estimativa é que 2,5% dos homens e 7,7% das
mulheres escolheram o celibato como
modo de vida. “E eles fizeram isso porque não sentem necessidade de atividade
sexual. São pessoas para quem o sexo não
tem apelo. Esse dado precisa ser levado em conta, porque mostra que nem para
todos o celibato é um sacrifício”, diz a
psiquiatra Carmita Abdo, da USP, coordenadora do Projeto Sexualidade (Prosex),
que chegou a esses números.
Por esse
raciocínio, o celibato funciona se a grande
motivação para ele for o desejo de não fazer sexo.
Ok. Mas não é o que acontece na Igreja. Quem vira padre o faz porque quer
dedicar sua vida a fazer o bem; porque sente prazer em ajudar; porque quer dar
conforto espiritual. A princípio, ninguém parte para o sacerdócio porque não
quer transar nunca mais. Mas não há escolha. O celibato na
Igreja é uma condição, não uma opção.
Os números falam por si. Se existem 400 mil padres
hoje no mundo, também há 150 mil pessoas que largaram a batina para casar. E
mais: “No Brasil, cerca de 50% dos sacerdotes teriam amantes. Esta prática de
não cumprir o voto de castidade está se espalhando pela Europa e pelos EUA”,
disse o teólogo Aldo Natale Terrin, da Universidade Católica de Milão, à rede
britânica BBC. E emendou: “As autoridades eclesiásticas erram ao afastar os
casados do sacerdócio e manter os que cometem abuso sexual e pedofilia”.
Mas
alguns sacerdotes que furam o bloqueio não têm estrutura para encarar as
conseqüências. Foi o que aconteceu com o padre mexicano Dagoberto Arriaga. Sua
fuga do celibato lhe rendeu um filho. Com medo
de ser expulso da Igreja, ele matou a criança em 2005. Acabou condenado a 55
anos de prisão.
Com uma realidade dessas, o Vaticano deve
estar mudando a cabeça em relação ao celibato,
certo? Errado. No fim de 2006, o cardeal brasileiro dom Cláudio Hummes,
considerado progressista dentro da Igreja, foi transferido para Roma, como
chefe da Congregação para o Clero no Vaticano.
Sua tarefa era cuidar de problemas relacionados ao comportamento de padres. Numa
entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que “apesar de o celibato fazer
parte da história e da cultura católicas, a
Igreja pode reverter essa questão”. Mas estamos em tempos de
conservadorismo no Vaticano. Bento 16, lembre-se, prega a
castidade não só entre os sacerdotes mas entre os fiéis também. Todo mundo só
devia transar para se reproduzir, diz o papa. Baita saia-justa defender o fim
do celibato numa situação dessas. Hummes
até precisou se retratar ao Vaticano,
dizendo que o assunto não está em discussão.
Mas deveria estar. É o que pensa Eliana Massih,
psicóloga do Instituto Terapêutico Acolher, uma instituição autônoma que se
dedica a aconselhar padres pedófilos: “Quando se propõe a vida celibatária, a
idéia é que a falta de sexo seja compensada pela vida
comunitária. Mas isso nem sempre acontece”, afirma. E completa: “Há pessoas que
têm vocação para o sacerdócio, mas não para o celibato”.
Rodrigues
concorda: “O celibato imposto provoca frustração,
incômodos, mal-estar. E, conseqüentemente, ansiedade e um estresse crônico”.
Certo. Mas existe outro problema. Ainda mais grave.
Em pele de cordeiro
A imposição do celibato e
a pedofilia podem andar de mãos dadas.
Expliquemos. A idéia de não fazer sexo é
um potencial atrativo para gente que quer fugir da própria sexualidade.
Essas pessoas são aquelas com “conflitos sexuais”, como dizem os psicólogos.
Pode ser um homossexual que acha sua preferência um pecado ou um pedófilo que
não compreende seu desejo por crianças, por exemplo. “Esses conflitos podem
fazer com que pessoas busquem ordens religiosas onde o celibato é
obrigatório para se livrar do mal-estar que sentem”, diz Rodrigues.
Juntar essas contradições internas ao estresse do celibato é
uma mistura explosiva. E ajuda a explicar por que existem tantos escândalos de pedofilia na
Igreja.
Mas não é
o suficiente. Para entendermos melhor o fenômeno, temos de olhar para as
circunstâncias em que os abusos contra crianças acontecem.
Os atos de pedofilia não
ocorrem na calada da noite, numa rua deserta. Os abusadores precisam ter acesso
à intimidade da vítima e à confiança das pessoas em volta. Por isso aparentam
ser pessoas sérias – afinal, quem vai confiar o filho a alguém que pareça um...
pedófilo? Eles são, em geral, ou do círculo familiar – pai, parentes, vizinhos
– ou profissionais insuspeitos, com livre acesso às crianças e posição de
responsabilidade. Aí entram professores, instrutores de acampamento, líderes
religiosos. Padres.
Em 2005,
o governo da Irlanda encomendou um relatório para estudar o abuso de mais de
100 crianças por clérigos da diocese de Ferns, no sudeste do país. Muitos
desses homens eram vistos como pessoas espirituais, bem-sucedidos e dedicados à
sua paróquia. E é exatamente a imagem de pedófilos como pessoas sinistras que
faz os abusos sexuais permanecer indetectáveis por muito tempo.
Como o pedófilo consegue chegar à vítima? Abusar
sexualmente não é tão fácil quanto roubar pirulito. Segundo o relatório Ferns,
em geral o abuso acontece depois de um longo e bem planejado processo. O
agressor sempre cria as circunstâncias propícias, se tornando amigo das
famílias com crianças. Para facilitar, ele procura crianças vulneráveis. Em
casas assistenciais, por exemplo. E as intimida para obter o silêncio.
Tarcísio, o padre do diário, foi transferido de
Agudos, São Paulo, para Anápolis, Goiânia. Lá conheceu um coroinha de 13 anos.
Aproveitou a pobreza da família para convidá-lo a morar na paróquia. Um mês
depois, passou a assediá-lo, tentar fazersexo.
Um dia, o pré-adolescente chegou bêbado em casa e contou tudo à mãe. Então
Sprícigo trocou de vítima: agora um garoto de 5 anos. Novamente, a música como
isca: durante aulas de violão, o padre fazia o mesmo que fez com sua vítima de
Agudos. Tentou até penetrá-lo, mas não conseguiu por causa dos gritos de dor da
criança.
Para se proteger, o padre Tarcísio fazia suas
vítimas jurar diante de uma imagem de Jesus Cristo que manteriam segredo. Atração
e intimidação. Um dia, a criança chegou em casa dizendo: “Vovó, eu sei fazer
amor”. A avó perguntou quem havia ensinado, mas a criança se recusava a contar
– “Mamãe vai me bater”, dizia. Quando a avó a convenceu de que não apanharia,
contou – “O padre Tarcísio me ensinou”. O sacerdote pressionou para que a
família silenciasse. Mas não conseguiu.
Gays e a Igreja
O Relatório John Jay traz um dado intrigante: dos padres pedófilos, 64%
abusaram somente de meninos, enquanto 22,6% abusaram somente de meninas. É o
inverso do que acontece na população geral, em que mais meninas sofrem abuso.
Seria então a porcentagem de homossexuais na Igreja maior do que fora?
Para o psicoterapeuta americano Richard Sipe, sim.
Richard é um ex-padre casado com uma ex-freira missionária e que já foi
professor, conselheiro e psicoterapeuta de mais de 1 000 clérigos com histórico
de envolvimento sexual.
Com base
em suas experiências, ele diz que metade dos padres mantém relações sexuais
(como disse Aldo Terrin sobre os sacerdotes daqui). E mais: que 30% dos padres
têm amantes mulheres; 15%, amantes homens; e cerca de 5% teriam “comportamentos
problemáticos” (como a pedofilia)
– uma proporção parecida com aquela do Relatório John Jay.
Se Sipe estiver certo, a porcentagem de gays ativos
dentro da Igreja chega a ser em média o dobro do total de gays da sociedade
brasileira. Segundo a maior pesquisa já feita no Brasil sobre o assunto, o
Projeto Sexualidade, de 2004, 7,9% dos homens são
homo ou bissexuais. É quase a metade do que Richard observa na Igreja.
A Igreja sabe da existência de padres
homossexuais e isso preocupa o conservador Bento 16. Em novembro de 2005, o Vaticano aprovou
uma instrução que fecharia as portas para os gays. Segundo ela, a Igreja não
pode admitir ao seminário quem pratique atos homossexuais, que apresentem
“tendências homossexuais profundamente arraigadas” ou que apóiem a cultura gay.
E quem tiver tendências homossexuais “transitórias” precisa superá-las 3 anos
antes de ser ordenado.
E o que dizer de padres homossexuais que seguem à
risca o celibato? Eles existem, claro, assim como
existem padres heterossexuais que seguem à risca o celibato.
Mas seriam eles pecadores? Não necessariamente. O catecismo católico diz, por
um lado, que atos homossexuais não podem ser aprovados em caso algum, pois a
Sagrada Escritura os apresenta como pecados graves. Seriam “intrinsecamente
desordenados”. Por outro, o catecismo afirma que pessoas com tedências
homossexuais devem ser acolhidas com respeito e delicadeza, sem qualquer traço
de discriminação.
Segundo o padre Edênio Valle em seu artigo A Igreja Católica ante a
Homossexualidade, quase todos os estudiosos católicos de hoje concordam que
atração pelo mesmo sexo não é uma opção, mas, sim, algo
imposto pelo destino, assim como nascer homem ou mulher. Logo, não é uma
questão moral nem há lugar para a culpa – ninguém é bom ou mau por ter
sentimentos que não pode afastar de si. O pecado estaria na aceitação dos atos
homossexuais. E não nos gays em si.
Que o diga o próprio Vaticano:
um artigo da revista americana Newsweek conta que, segundo alguns funcionários
da Santa Sé, a sede da Igreja teria uma comunidade gay “underground”. Como não
sobreviveriam em suas paróquias, muitos padres homossexuais teriam sido levados
para o Vaticano, onde receberiam alguma função
burocrática.
Foi à
sombra da Basílica de São Pedro, aliás, que aconteceu um dos maiores escândalos
dos últimos tempos envolvendo homossexualidade na Igreja. Em outubro, o
monsenhor Tommaso Stenico, alto funcionário da Congregação para o Clero,
convidou um jovem que ele tinha conhecido num chat sadomasoquista na internet
para uma visita a seu escritório, em pleno Vaticano.
O que ele não sabia era que o rapaz estava fazendo uma reportagem sobre a vida
sexual de sacerdotes para uma rede de TV. E que tinha entrado em sua sala com
uma câmera escondida.
Stenico pergunta “Você gosta de mim?” e elogia a
beleza do jovem. Quando vê que o bote do monsenhor é iminente, o repórter à
paisana dispara: “Mas isso não seria um pecado aos olhos da Igreja?” Stenico
diz que não. Depois se enche das recusas do rapaz e o leva embora. Não sem
antes dizer “Você é muito gostoso...”
O programa não identificou o monsenhor. Mas os
superiores dele reconheceram o escritório. E o Vaticano suspendeu-o
imediatamente. Para se defender, Stenico disse que se fazia de gay para ajuntar
informações sobre pessoas envolvidas num complô para seduzir padres à
homossexualidade e desacreditar a Igreja.
Abusos contra mulheres
Os escândalos de sacerdotes gays e pedófilos chamam
mais a atenção da imprensa, por motivos óbvios. Mas também há casos de abuso
por parte de padres héteros.
Uma
compilação deles está no estudo Desvelando a Política do Silêncio: Abuso Sexual de Mulheres por Padres no
Brasil, da socióloga Regina Soares Jurkewicz. Seu conteúdo é tão explosivo que,
após dar entrevista a uma revista, foi demitida do Instituto de Teologia da
diocese de Santo André, SP, onde trabalhou por 8 anos.
Jurkewicz analisou 21 casos de abuso sexual contra mulheres por
clérigos entre 1994 e 2002 – 17 deles envolvendo meninas entre 9 e 16 anos.
Chegou à conclusão de que abusadores escolhem mulheres pobres, com dificuldade
de se expressar, sem consciência de direitos e com vida considerada moralmente
“dúbia” – em outras palavras, pegam aquelas menos prováveis a denunciá-los e
com menos credibilidade caso o façam.
O estudo diz que, enquanto a cúpula da Igreja
mantém-se silenciosa, preocupada em saber se o clérigo está disposto a pedir
perdão a Deus e, principalmente, em manter a imagem da instituição, as
comunidades em que ocorrem denúncias de abuso sexual por parte de seus padres
“oscila entre compreendê-los, aceitar seu comportamento, duvidar das denunciantes e
até responsabilizá-las – afinal, podem ter seduzido o sacerdote, um homem
celibatário por definição”.
A
conclusão de Jurkewicz é que as práticas ilegais masculinas são toleradas pelas
comunidades e pronto. Mesmo que feitas por padres. E cita o caso de um
sacerdote flagrado como cliente de uma rede de prostituição juvenil
desmantelada pela polícia. Nesse caso, um fazendeiro defendeu o padre, seu
amigo, e debochou: “Que mandem um padre bicha para a cidade para acabar com o
problema”.
Não são só os amigos que ajudam. Sempre que algum
sacerdote está metido em confusão existe a pecha de que a Igreja o protege da
Justiça. Mas até que ponto isso é verdade?
E o Vaticano?
Seria absurdo dizer que o catolicismo apóia abusos
sexuais. O direito canônico, isto é, a lei da Igreja Católica, coloca os pecados dessa
estirpe entre os mais sérios, junto com o homicídio. No entanto, a cúpula da
Igreja parte do pressuposto de que só ela deve julgar os pecados cometidos por
seu clero, e isso dificulta que os crimes sexuais sejam levados à Justiça. “A
responsabilidade sobre o padre [acusado de má conduta sexual] é do bispo da
diocese a que ele pertence”, diz o padre Geraldo Martins, assessor de
comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em casos graves, o
padre é expulso da Igreja.
Em 1962, o papa João 23 teria enviado a bispos e
arcebispos do mundo todo um documento secreto chamado Crimen Sollicitationis.
Ele instruía os chefes da Igreja a lidar com padres que abusaram de crianças e
impunha um alto grau de segredo a todos os envolvidos nesses casos. A pena para
quem abrisse a boca era a excomunhão automática – incluindo as testemunhas e os
acusadores.
Em Crimen Sollicitationis, se a acusação fosse considerada infundada, todos os
documentos com essa acusação deveriam ser destruídos. Se houvesse
alguma prova vaga, o caso seria arquivado até a chegada de uma evidência
contundente de fato. Já se a prova fosse forte, mas insuficiente, o acusado
levaria uma advertência e o processo seria mantido sob observação. Caso a prova
fosse definitiva, o acusado seria levado a um julgamento dentro da Igreja.
Em 2001,
o papa João Paulo 2o publicou o Sacramentorum Sanctitatis Tutela, esboçando
novas normas para graves ofensas. Em seguida, a Congregação para a Doutrina da
Fé discutiu e explicou essas normas numa carta a todos os chefes religiosos do
mundo, assinada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, hoje Bento 16.
Segundo essa carta, a Congregação, no Vaticano,
continuaria a ter competência exclusiva em relação a certas ofensas graves –
entre elas, as ofensas sexuais com menores de 18 anos.
Mas, apesar da exposição cada vez maior na mídia,
os crimes sexuais estão diminuindo. Essa é mais uma das conclusões do Relatório
John Jay. Ele mostra que padres ordenados na década de 1960, por exemplo,
cometeram 25,3% dos abusos sexuais contra crianças entre 1950 e 2002. Os que
entraram para a Igreja nos anos 70 respondem por 19,6%. E a queda continua. Só
8,4% dos crimes são obra de padres ordenados nos 80. Os mais jovens, que
entraram de 1990 em diante, formam apenas 2,3% do total.
Mas o que
explica essa queda?
Paz na terra
Um dos motivos para a melhora está nos programas de
tratamento de desordens psicossexuais de clérigos. Até os anos 50, a atividade
sexual do padre era vista como um problema exclusivamente moral ou espiritual,
segundo Richard Sipe. Homossexualidade e pedofilia eram
“tratados” apenas com a transferência de paróquia ou com “renovações
espirituais”.
Depois, passaram do campo somente moral e
espiritual para o científico. Finalmente, foi reconhecida sua dimensão
psicológica. Em 1976, a congregação religiosa americana Serventes do Paracleto
abriu o primeiro programa para tratamento de desordens psicossexuais, o que
incluía abuso de menores. O tratamento ficou tão high-tech que padres que não
respondem à terapia convencional recebem uma castração química com o
medicamento Depo-Provera, que diminui os níveis de testosterona e,
conseqüentemente, a libido em homens. Ironicamente, o Depo-Provera é um
anticoncepcional, tão combatido pela Igreja Católica.
No Brasil, o mais importante centro de tratamento
de padres é o Instituto Terapêutico Acolher, presidido pelo padre. Edênio
Valle, professor de psicologia da
religião da PUC-SP. De acordo com Eliana Massih, existe uma grande preocupação
da Igreja Católica sobre sexualidade e
desvios de conduta associados. Além da assessoria de psicólogos, há a
publicação de artigos sobre sexualidade em
periódicos como a Revista Eclesiástica Brasileira, com circulação entre o clero.
Mas a Igreja consegue mesmo garantir que
seminaristas escolham a vida sacerdotal como algo bom para si, em vez de uma
fuga de sua sexualidade? “Não completamente. Mas em
grande parte sim”, diz Massih. Hoje, a Igreja faz uma “operação pente-fino”
antes de admitir um seminarista, com uma sabatinada de avaliações psicológicas.
Outro
ponto que ajuda é a própria conscientização dos clérigos para não deixar que
crimes de seus colegas passem em branco. “Hoje, qualquer padre responsável e
consciente de seus deveres toma as medidas necessárias segundo a lei”, diz o
padre Edênio.
Segundo a lei e segundo a própria fé cristã, que
reza: não faça ao outro aquilo que não quer que façam com você.
Aconteceu
em Mariana (MG). O padre Bonifácio Buzzi, na época com 41 anos, foi denunciado
e preso por levar um garoto de 11 anos à beira de um rio “para pescar” – na
verdade, ele passou um longo tempo fazendo sexo oral
na criança e tentou comprar-lhe o silêncio com R$ 5. Foi a 2a denúncia contra o
padre – 13 anos antes, ele teria molestado um menino de 5 anos e outro de 11.
Causo de
pescador - Abril de 2002
Em São João do Triunfo (PR), o padre Jacinto César
Parachuk, na época com 35 anos, foi preso em flagrante por molestar um garoto
de 14 anos. Ao depor, o menino disse ter sido atraído por uma oferta de R$ 10
para cortar grama. Dois anos antes, outra acusação de abuso havia provocado a expulsão do
padre do quartel do Exército em Uruguaiana, RS, onde foi capelão.
Dose dupla - Maio de 2003
Diretor de uma casa de assistência na região de
Sorocaba (SP), o padre Alfieri Eduardo Bompani, de 62 anos, abusou de 13
crianças entre 6 e 10 anos. Ele chegou a registrar os casos em uma pasta de seu
computador chamada “Contos Homossexuais”. Em 2003, foi condenado a 93 anos de prisão.
AIgreja Católica terá de desembolsar R$
3,2 milhões em indenizações às vítimas.
Diário macabro - Agosto de 2006
Uma câmera de celular flagrou o padre Sebastião
Braga fazendo sexo com um garoto de 11 anos na casa
paroquial de Comendador Gomes, MG. O padre, acusado de abusar sexualmente de 6
garotos, confessou os crimes e disse ter feito tudo inconscientemente. Ao
deporem, duas crianças contaram que o padre pagava às vítimas de R$ 10 a R$ 80.
No
celular - Dezembro de 2006
O padre Djalma Brito Mota, de Ichu, BA, foi
sentenciado a 7 anos e 7 meses de prisão por
corromper adolescentes em 2005 e 2006. Em 2005, levou o adolescente J.N.S. para
fazer um exame oftalmológico em Feira de Santana. Na volta, trocou carícias com
ele. Um dia depois, pagou R$ 10 para que o garoto e um amigo participassem de
uma pequena orgia na casa paroquial.
De olhos abertos - Outubro de 2007
Na época com 40 anos, o padre Paulo Sérgio Maria
Barbosa foi flagrado com um adolescente de 14 anos dentro de um Gol, num
canavial em Corumbataí (interior de SP). No carro havia 48 fotos de meninos,
camisinhas e uma revista com capa sobre pedofilia.
Dom Eduardo Koaik, bispo de Piracicaba, levantou a suspeita de armação. “O
padre é respeitoso com todas as pessoas”, afirmou.
No
carnaval - Maio de 2002
Foi na frente de um drive-in em Marília (SP) que o
pai de duas meninas, de 15 e 16, surpreendeu José Balikian. O padre se
relacionava com as duas havia um ano e meio. Foi preso após o pai apresentar
150 e-mails enviados pelo religioso às garotas.
No
Drive-in - Junho de 2005
Fonte: SuperInteressante